quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A Confissão Perdida


Ajani,
 
Estou escrevendo esta carta a você, sabendo que provavelmente nunca a lerá. Quando eu terminar estas palavras, irei enrolar o pergaminho e guardá-lo em um recepiente de cerâmica, para depois jogar no pântano. É assim que se fazem orações aqui... ou, pelo menos, as orações para Pharika (que aparentemente é a divindade das poções). Ela também é a deusa do veneno, então talvez estas palavras apenas piorem as coisas para mim. Ainda não compreendo este mundo... na verdade, eu tenho estado muito ocupada tentando não morrer. Desculpe, estou me adiantando no assunto.
 
Certa vez eu te disse que a minha espada é de um plano chamado Theros, lembra-se? Pois é aqui que estou agora. Eu tive vislumbres nebulosos algum tempo atrás referentes à minha primeira visita feita anos atrás... uma antiga floresta, com grandes oliveiras retorcidas e um precipício estonteante com vista para uma grande extensão de rochas e morros. Logo em seguida, minha memória lembra-se de um pântano sombrio perto de uma entrada de uma caverna. Eu estava lá, naquela gruta que parecia um templo, sob cuidados de alguns sacerdotes ofídioformes por alguma razão. Eles não se importaram com quem eu era nem de onde eu havia vindo, tampouco me solicitaram qualquer compensação pela ajuda deles. Atualmente, eles empurram o lápis de carvão que tenho na minha mão. Eu sei que eles quem ajuda para escrever suas orações... mas, como eu posso fazer isso quando eu não entendo a natureza do divino?
 
Koth disse que te viu uma segunda vez depois de Urborg, mas ele nunca me contou as circunstâncias. Eu espero que você não tenha tentado me encontrar em Mirrodin, mas pelo menos creio que esteja um pouco ciente do que aconteceu. Você sabe que Phyrexia se ergueu e tomou conta daquele mundo metálico. Você sabe que uma jovem mirraniana chamada Melira nos forneceu uma imunidade natural ao contágio phyrexiano. Você vagou pelas Eternidades Cegas mais do que eu, então provavelmente percebeu o contágio mais do que eu mesma.
 
Koth é... foi... um homem notável. Eu não sei se ele sobreviveu. Pelo que sei, ele foi morto de alguma forma brutalmente dolorosa. Afinal, uma que vez que ele estava imune ao contágio, os phyxerianos precisariam despedaçá-lo para forçar a submissão. Eles certamente são especializados em desmembramento, mas nós prometemos um ao outro que nos mataríamos antes que pudessem nos levar para aquele estado servil catatônico. Mas eu não estive lá ao lado dele no final, então não sei ao certo o que aconteceu. Se ele morreu, eu rezo para que tenha sido uma morte rápida.
 
Houve um breve momento após salvarmos Karn em que eu pensei que a resistência teria uma chance. Os Pretores estavam disputando entre si a supremacia e desprezaram o intruso, Tezzeret. Embora a resistência tivesse acesso limitado à informação, acreditamos que Elesh Norn tomou os domínios de Urabrask de e Sheoldreds. Então, concentramos nossas energias em destruí-la. Porém, para cada vida que salvávamos, eles abatiam oito, dez... centenas a mais. E logo haviam poucos que ainda podíamos tentar salvar. Nas palavras de Elesh Norn: "Nós somos uma única entidade. Dissidentes devem ser suturados na ortodoxia."
 
A vida em Mirrodin era uma verdadeira doença além da compreensão. Nós tentamos sobreviver... dia após dia... tentamos... até que não havia mais onde se esconder nem onde se esconder. A resistência estava perdida. Chegamos à noite derradeira de sob o estandarte da sobrevivência mirraniana.

Nós estávamos separados de Melira e seus guardiões. Eu não sei se eles foram capturados, mas também não imagino como eles poderiam escapar. Koth e eu conseguimos nos infiltrar na catedral-fortaleza deles após transpor uma verdadeiro labirinto de morte e loucura. Tivemos que atravessar o Saguão da Carnificina para chegar à câmara secreta que havia sido usada para execuções "especiais" nos dias de Karn. Agora, ela estava vazia, exceto pela decoração dramática de sangue seco que pontilhava o teto, quase parecido com estrelas no céu noturno.
 
A coisa mais importante desta câmara é que era situada sob a nova sala do trono. Koth carregava uma magibomba. Ou melhor, o mirranianos sempre tiveram magibombas através das eras, mas ninguém nunca havia construído uma tão poderosa quanto aquela magibomba que estava sob os cuidados de Koth. Nós tínhamos modificado usando novos artifícios sugeridos por Venser. A idéia foi rabiscada em pergaminhos que o próprio Venser carregava e que eu notei que se tratavam de esquemas para a construção de embarcações capazes de viajar entre os planos. Não me odeie, mas eu estou feliz que Venser tenha morrido antes que pudesse fabricar tais naves.

Ajani, eu rezo para que você nunca veja Phyrexia. Mas imagine uma folha branca com um de seus cantos mergulhado em um balde de sangue. É uma lei da natureza que o sangue vai se espalhar e formar uma mancha cada vez maior. Isso é Phyrexia! Por isso que eu disse que eles venceram. Phyrexia consumiu tudo e todos em Mirrodin, até que somente eu e Koth restamos como formas naturais de vida naquele mundo metálico.
 
Nós aprendemos que os pretores estavam se reunindo na sala do trono para selecionar um novo Pai (ou Mãe) das Máquinas... e seja lá o que isso signifique, parecia bastante amedrontador. Tezzeret deveria estar lá também. Mas por algum motivo, ele não estava. Parece que de certa forma, ele sabia que os pretores poderiam decapitá-lo ou roubar partes de seu corpo para fazer uma nova construção grandiosa. De qualquer forma, nós dois não sabíamos se teríamos outra chance de estar tão próximos de um local onde os pretores estavam reunidos. Assim, esta foi nossa última chance e pretendíamos fazer eles sofrerem um grande estrago.
 
No entanto, eu não podia deixar de pensar: O que resta neste mundo para salvar? Eu vi os pretores como os deuses de Nova Phyrexia. Eu imagino que era exatamente assim que eles viam a si mesmos. Além disso, mesmo que matássemos os pretores, isso não traria um fim definitivo. Phyrexia é uma força tão assustadora pois ela não precisa de nenhuma mente para conduzir o genocídio inerente ao contágio. Elesh Norn, Sheoldred, Jin-Gitaxias, Urabrask, Vorinclex... se uma cabeça é perdida, outra será moldada em uma gloriosa perfeição. E Phyrexia vai se espalhar, você sabe disso tão bem quanto eu. É tudo uma questão de tempo.
 
Você sabe o que Koth diz: "Se não houver nenhuma vitória, então eu vou lutar eternamente". Mas, naquela noite, eu alcancei o meu limite. Escrever isso me deixa tão mal, Ajani. Sinto como se cacos de vidro estivessem descendo por dentro da minha garganta. Gostaria de ficar cega se eu pudesse esquecer tudo que eu já vi. Eu estava pronta para morrer lá, com Koth, para me sacrificar por um bem maior? Ele estava disposto. Ele nunca vascilou. Onde quer que esteja, o que quer que ele tenha se tornado... não há dúvida de que ele é uma alma melhor do que eu.
 
Os phyrexianos nos encurralaram, embora estivessemos atrás de uma porta fechada. Era apenas uma questão de tempo antes deles quebrarem as defesas que Koth havia colocado na porta. O barulho das armas contra a parede era uma cadência, contando os segundos até que eles entrassem. Eu não senti nenhuma glória, nenhum desejo de grandeza. Eu vou te dizer a verdade: eu só que tudo terminasse. Eu estava ferida, faminta e assombrada pelos mortos. Koth preparou a magibomba.

"Você irá embora", disse ele.
 
Você já reparou que o tempo é uma coisa engraçada? Alguma vez você já sentiu que tudo parecia lento e de repente os segundos parecem facas em sua pele? É uma angelical verdade, mas eu não entendia o que ele estava dizendo para mim. Eu gostaria de dizer que eu protestei. "Não, não, eu tenho que ficar e lutar"... algo parecido com isso. Porém, eu só olhava para ele, ouvindo a porta cedendo cada vez mais para a determinação dos invasores de esfolar a pele de nossos corpos ainda vivos.

"Você irá embora", disse ele novamente. "E não há motivo para regressar. Sele esse mundo fora e jogue fora a chave."

Para onde eu iria? Não sabia o que pensar, apenas falei: "Não há nenhuma casa para mim, Koth. Não depois disso. Não depois de tudo o que aconteceu."

"Você pode encontrar descanso ou você pode encontrar um outro campo de batalha", disse ele. "Mas não aqui."
 
Eu já te disse o que Koth fez com Venser? Ainda estavamos em Urborg, quando ele viu que Venser estava construindo aquela embarcação que mencionei? Ele envolveu a cabeça do rapaz em pedra e o coagiu a ir para Mirrodin.

Agora era a minha vez, mas ele só me afundou até os joelhos na pedra e me deixou lá, como se eu fosse uma estátua. Em seguida, Koth ergueu um muro entre nós. Um muro tão espesso e resistente que me manteve a salvo da magibomba. Esse é Koth. Ele sempre lhe apresenta uma escolha única e simples: concorde ou morra.
 
Eu sei que você me diria que o perdoasse. Ele estava tentando salvar a minha vida, que eu não tinha interesse em me salvar. Mas eu o odeio por me trancar dentro de uma gaiola com uma porta controlada por outras mãos que não as minhas. Uma porta com cada pesadelo que eu já tinha esquecido e superado.

Nunca fui rápida no quesito deslocamento entre os planos. Uma vez, você me disse que isto ficaria mais fácil e doeria menos. Mas ainda sinto como se eu precisasse usar uma faca metafísica para rasgar minha pele em preparação para as Eternidades Cegas. Com as pernas imobilizadas, eu me preparei para sair dali pois eu estava entre a porta que logo seria arrombada pelos phyrexianos e pela parede que Koth construiu.
 
Entretanto, para sair dali, eu tinha que estavelecer um vínculo com aquele mundo metálico fétido dominado pela violência mais uma vez. Era difícil manter as forças perante tamanha incivilidade. A porta explodiu do outro lado. Sei que já deveria ter partido, mas não estava conseguindo.
 
Um Obliterador cambaleou para dentro da câmara. Esta é uma das criaturas do contágio, uma abominação projetado apenas para matar. E sob a visão distorcida das máquinas, essas criaturas são perfeitos no que fazem. Ele veio para mim com fileiras de dentes arrancados de seres vivos e implantados em sua bocarra. Braços múltiplos semelhantes a lâminas rasgavam o ar, enquanto vapores tóxicos vazavam de suas cavidades torácicas. Ele vestia a pele dos mortos e portava um legado de vida esmagados e destruídas.

Ele deu apenas um único passo além da porta e, aparentemente, percebeu minha presença. Eu nem sequer tive tempo para levantar a minha espada para aparar duas de suas lâminas, as quais foram cravadas profundamente em minha barriga. No entanto, neste momento, a magibomba explodiu e eu caí no chão (ainda com as pernas envoltas em pedra). Não sei dizer as proporções do estrago, pois além da parede improvisada que Koth me preendeu, eu apenas via o céu composto por constelações estranhas oriundas do padrão degradande da violência ali estabelecida. O obliterador pairava acima de mim, desmebrado pela explosão. Porém, cada um dos pedaços de seu corpo estava em queda livre e suas lâminas despencavam em minha direção. Nesse momento, eu fechei os olhos e, na escuridão da minha mente, as constelações manchadas de sangue se transformaram na noite de Theros.
 
Lembrei-me de Heliod, o deus do sol. Eu vi ele no dia que eu obtive a minha espada. Sua forma dominava o horizonte naquele momento. Ele era como um homem, mas com a essência das estrelas. Eu queria desesperadamente estar em Theros, nos braços do único plano no qual eu já tinha visto o rosto de um deus de verdade.
 
Meu sangue escorreu para fora enquanto eu tentava me restabelecer. Cruzei as Eternidades Cegas pensando que dentre todos os mundos existentes, talvez exista algo relacionado às presenças divinas em Theros que o mantenha a salvo da destruição e da infecção. Talzes, esse seja o problema. Talvez um mundo precise de deuses para não desmoronar. Mirrodin não possuía divindades verdadeiras e provavelmente por isso foi consumido.
 
Eu preciso descobrir o que os deuses são e o que eles querem. Será que eles desejam sacrifício? Lealdade? Honra? Até que eu esteja curada, ficarei no limbo desta caverna sagrada, onde a vida e a morte parecem coexistir em certa harmonia estranha. De onde eu repouso, posso admirar o céu azul deste mundo através da fenda estreita na rocha. Não há nada para impedir a minha saída. Assim que eu estiver apta, sairei daqui e renascerei. Estou determinada a ficar aqui até compreender a natureza de Theros e de seus administradores divinos.
 
Se você estivesse aqui, Ajani, o que você acha que eu devo fazer? Devo gritar o nome de Heliod aos céus? Devo fazer um sacrifício? Minha espada é a única coisa de valor que eu tenho que um deus pode cobiçar.

Que tal esta oração: Por favor, deixe que haja algo maior do que eu. Maior do que o mal inexorável que parece devorar todos os lugares onde eu vou. Por favor, tire a dor, a solidão e as lembranças que eu não desejo mais possuir.

Aqui está o que eu diria para Heliod, se eu nunca ver seu rosto: Dê-me tranquilidade! Dê-me paz! E por final, dê-me o merecido descanso.

Então, Ajani, agpra que você ouviu a minha história, irá me julgar? Você vai me chamar de covarde por partir mais uma vez? Talvez outros assim o façam, mas espero que você não o faça. Quando você direciona o olhar para mim, sinto que você consegue ver tudo o que eu poderia ser. No entanto, quando eu olho para mim mesma, eu só vejo o que eu deveria ter sido.

Eternamente sua,

Elspeth.

Um comentário:

  1. nao conhecia essa parte da historia. legal. nao sabia dessas coisas do kotao ajani etc. valeu! gorge

    ResponderExcluir