"Que coisinha bonita." - Muzan grasnou.
Seus grossos polegar e indicador seguravam o queixo de Olhos-de-Tinta. A mão, com quatro dedos, poderia esmagar aquele delicado crânio com facilidade, um pensamento que pareceu atravessar os olhos dele, brevemente, antes dele aproximar sua face dela. O fétido hálito eriçou os pêlos de Olhos-de-Tinta. Cheirava a carne, sangue e vinho. Tão bonita e tão cruel.
Olhos-de-Tinta olhou para trás, sem piscar.
"Ah, como você me provoca, pequeno docinho." - Muzan continuou. "Eu a encontrei sozinha no pântano, expulsa pelos seus próprios homens-rato. Você veio a mim, com fome e frio, agora você é um corpo putrefato bem alimentado, aquecida por deveres, não mais sozinha. Você teria morrido sem mim, ratinha." - O ogro riu maliciosamente.
"Contudo você me ama por isto?" - O aperto no queixo de Olhos-de-Tinta começou a doer. O osso rangeu sob a pressão. A face dura do ogre preencheu sua visão, sua pele um púrpura cinzento. "Eu te transformei no que você é e não ganho nenhuma expressão de gratidão. Você não é nada, só uma miserável, meu docinho nezumi, uma infeliz, sem amor, miseravelmente cruel."
Com uma pancada do seu braço, Olhos-de-Tinta navegou pela escuridão. Suas costas bateram nas pedras, logo depois foi a vez de sua cabeça e ela caiu no chão frio. No entanto, a nezumi ergueu-se rapidamente.
"Eu sou o que você me fez, mestre." - ela disse.
"Ora!" - Muzan gritou. Com velocidade surpreendente, ele arremessou uma pesada cadeira nela. A cadeira teria esmagado suas pequenas formas se ela não se movesse, mas Olhos-de-Tinta rolou lateralmente. A madeira rachou contra a pedra, partindo-se em várias partes. Antes dela se levantar, o ogro estava em cima de Olhos-de-Tinta com os punhos cerrados. Muzan era volumoso, massa feita de músculos e profusões ósseas, e seu rugido era ensurdecedor. "Olha! Você arruinou minha cadeira favorita!", ele disse.
Muzan apertou os dedos na garganta dela. Ele ergueu Olhos-de-Tinta, balançando-a sobre o chão. Novamente, seu hálito pútrido ondulou a face dela.
"Você irá consertar minha cadeira!" - ele exigiu.
"Claro." - Olhos-de-Tinta ofegou.
Ela já não podia respirar, então sua voz era como um sussurro: "Eu consertarei isto, como eu sempre faço, Mestre." A escuridão começou a fechar as extremidades da visão de Olhos-de-Tinta.
"Você é um bom docinho." - Muzan disse. Então ele a derrubou e prosseguiu: "Tão doce, tão tenra." Olhos-de-Tinta agarrou a própria garganta, tossindo e tomando fôlego. Muzan tinha se virado para ela e andado com dificuldade para as sombras. A escuridão o consumiu. Olhos-de-Tinta podia ouví-lo remexendo outra bexiga de vinho, enquanto enchia sua caneca quebrada. Sua voz ecoou assustadoramente para fora da caverna.
"O Grande Mestre requer mais sangue e ele falou de um grupo de nezumis acampado aqui perto." - o ogro falou.
Olhos-de-Tinta sentou-se. Seus olhos negros brilharam na luz escassa do quarto. "Grupo de nezumis?" - ela perguntou. "Você tem certeza que foi isso que ele disse?"
"Claro, claro. O Grande Mestre foi bem claro. Você quer saber se é seu precioso grupo Okiba, hein? Quem sabe? Todos os ratos são iguais: patéticos e reclamões. Pergunte-me de que família pertence as rãs lá de fora e minha resposta será a mesma. Quem sabe, quem sabe?" - Olhos-de-Tinta ouviu ele tomar um longo gole, então expirar. Sua voz veio do quarto nas sombras.
"Tudo o que você precisa saber é quem lidera os ratos, docinho. Encontre o rato mais gordo, rache sua flácida garganta e traga-me seu sangue nojento." - O ogro explicava.
Olhos-de-Tinta o saudou: "Como você deseja, mestre."
"Como meu Grande Mestre deseja." - Muzan a corrigiu e então arrotou. "Mas conserte a cadeira antes de você ir, minha coisinha bonita."
Um poeta, uma vez, havia chamado o pântano Takenuma pela alcunha de Ladrão do Amanhecer. A luz solar não havia tocado seu chão escuro há quase vinte anos atrás, desde que os kamis forjaram sua raiva no mundo. Agora, não importa que hora do dia, o pântano de bambu estende-se acinzentado como em crepúsculo perpétuo. Uma névoa circulou suas pernas quando ela entrou nas águas rasas. Ela conhecia essas partes de Takenuma bem e sabia evitar suas armadilhas mortais.
Durante a jornada, ela passou por buracos movediços, ninhos de besouros carnívoros e sepulturas assombradas tão facilmente como se estivesse flutuando sobre um campo de lírios. Ainda era cedo da noite, sua presa nao havia dormido. O Grande Mestre receberia seu sangue hoje à noite. Olhos-de-Tinta entalhou um pedaço de bambu com sua lâmina longa, aproximando-se da clareira. De pé em meio à imundície e à névoa, Olhos-de-Tinta desembainhou a espada O-Naginata de suas costas. Ela fixou a parte traseira da arma no solo e deixou a lâmina próximo de seu rosto. Olhos-de-Tinta respirou profundamente de olhos fechados.
Lentamente, ela começou a ouvir a melodia soturna do Takenuma. Rãs coaxavam. Chiados de insetos. De vez em quando um pássaro noturno se fazia ouvir. Esses foram os primeiros sons que vieram às orelhas de Olhos-de-Tinta: os sons da natureza. Porém, gradualmente, eles começaram a dar lugar para barulhos estranhos. Olhos-de-Tinta ouviu o gemido de espíritos dos mortos abafando os sons do pântano. Ela tinha certeza que aquelas vozes não eram o que ela estava procurando, mas aumentaram tanto que ela preferiu concentrar-se nelas. Poucas palavras eram inteligíveis, mas Olhos-de-Tinta sentiu as emoções que dirigiam aqueles gemidos fantasmagóricos. Vingança, sofrimento e as vezes nada mais do que a dor da perda e da confusão.
Quando seu foco se tornou mais profundo, ouvia até mesmo o choro lento e enfraquecido dos espectros. Uma terceira melodia ergueu-se então, completamente sobrenatural. Gritos agudos de animais torturados, incompreensíveis lamúrios de milhões de vozes e garguejos borbulhantes de alguém se afogando em areia movediça. Todos ao redor de Olhos-de-Tinta. Esses eram os murmúrios assustadores de kamis que fizeram do Takenuma sua casa. Eles eram a razão para sua meditação.
Os barulhos sombrios dos kami rodeavam Olhos-de-Tinta em correntes e redemoinhos. No início, eles não eram nada mais que um murmúrio. Porém, logo, o murmúrio se tornou tumulto em sua mente. O tumulto cresceu para cacofonia, gritando em suas orelhas, ameaçando rasgar a sanidade dela em pedaços. Olhos-de-Tinta concentrava-se contra a investida daqueles sons não-naturais, usando sua alma para procurar o que ela deveria encontrar em meio aquele mar de sons macabros.
Depois de movimentos convulsivos, ela havia encontrado algo. A cacofonia permaneceu, rodando e batendo na esfera emudecida na qual ela havia se escondido, enquanto Olhos-de-Tinta se focava somente no silêncio. Naquele silêncio estava o conhecimento que ela procurava. Quando tocou o casulo de silêncio com sua mente, ela entregou-se a forças desconhecidas e o seu corpo começou a se mover. Seu pé esquerdo deslizou lateralmente na lama macia, perturbando os répteis abaixo. Seu outro pé deslizou adiante. O peso do corpo havia mudado. Logo, seus braços se moveram também, seguidos da cabeça e do rabo. Sozinha à noite em Takenuma, Olhos-de-Tinta dançava como se fosse um boneco preso em correntes invisíveis dentro da bolha silenciosa de meditação.
Ela dançou por horas naquele silêncio, guiada pelo outro mundo. Olhos-de-Tinta acreditava que ela era a mais qualificada ninja dos nezumi, contudo ela nunca havia sido treinada por um sensei mortal. Aquela clareira era o lugar onde ela imaginava ser o melhor para treinar. Anos atrás, os sons de fantasmas e kami que somente Olhos-de-Tinta podiam ouvir tinham causado temor à mente de uma menina torturada. De alguma maneira, o fato dela poder ouvi-los passou a se tornar um pequeno conforto. Não demorou muito para que Olhos-de-Tinta procurasse algum padrão no meio do balbuciar sobrenatural.
Quando ela encontrou o bolso do silêncio, o lugar onde sua mente não era esfolada por vozes além do véu, foi que Olhos-de-Tinta começou a mudar. Ela ficou notoriamente mais rápida e mais forte depois destas meditações, além de também tornar-se mais proficiente com suas armas. Já havia ultrapassado o que ela havia aprendido, para sua idade, de centenas de professores. Essas habilidades não só tinham lhe assegurado sua sanidade, mas sua sobrevivência. Olhos-de-Tinta havia sido enviada em incontáveis sangrentas missões por Muzan e seu Grane Mestre das Sombras, e ela nunca havia fracassado nelas. Muzan nunca questionou como ela tinha tanto sucesso. Saber que Olhos-de-Tinta era bem sucedida era o bastante para ele.
Olhos-de-Tinta diminuiu seus movimentos e então parou. Os sons dos kamis enfraqueceram como se tivesse caído em um poço profundo. Por alguns momentos as vozes fantasmagóricas substituíram-nas, contudo essas sumiram muito depressa. Logo, ela só era rodeada pelas rãs, insetos, pássaros noturnos e o som pesado de sua própria respiração. Como sempre, depois de suas lições subconscientes, ela fitou a O-Naginata em uma mão. Nas extremidades da clareira em um círculo largo, bambu podre havia sido partido até o chão. Olhos-de-Tinta endireitou-se. Apesar da estranha luminescência do pântano, a lua era claramente visível, um disco branco pálido. Era quase meia-noite e ela finalmente compreendera algo importante. E não teve mais dúvidas quando partiu correndo para longe.
Erguendo-se diante dela na escuridão, estava o que tinha sido uma vez um templo ancestral. Seu telhado estava intacto, embora houvesse perdido diversos azulejos. As paredes eram as mesmas, indicando a grandeza do templo. Olhos-de-Tinta não parou para saber quem tinha sido adorado aqui a centenas de anos antes de ser dragado pelo Takenuma. Ao invés disso, ela espiou o terreno para planejar sua aproximação, escolhendo sua entrada na estrutura. Decidiu, então, colocar a máscara preta que era a marca dos ninjas em cima do nariz e da boca.
Ela caminhou silenciosamente pela névoa, circulando ao lado do templo dissecado. Sobre ela, uma janela aberta e negra como uma órbita ocular vazia. Dobrando as pernas, ela saltou pela janela desocupada acima. Nenhum guarda apareceu. Nenhum alarme soou. O corredor diante dela era quase totalmente ocupado pelo breu. Olhos-de-Tinta moveu-se lentamente, com armas em punho e com suas costas contra a parede de pedra do templo. Ela parou para ouvir algo. Um ronco macio ecoou de um quarto perto. Olhos-de-Tinta esgueirou-se nas trevas em direção ao barulho, ansiosa para cumprir sua missão.
Com uma palavra sussurrada, uma orbe de luz vermelha apareceu diante dos olhos de Olhos-de-Tinta. Pulsou como um coração agonizante, iluminando o corredor. Quando ela se movia, a orbe também se movia junto com ela, sempre com o intuito de iluminar seu caminho. Seu domínio do ninjitsu não tinha sido o único resultado das meditações dela no Takenuma.
Olhos-de-Tinta entrou em um dos quartos. No brilho carmesim da orbe, uma figura estava em um tapete de palha, embrulhado firmemente em uma manta esfarrapada. O quarto estava vazio, com exceção de símbolos obscuros que cobriam as paredes para formar um mosaico cru. Estas não eram escritas dos habitantes originais do templo. Realmente, as marcas contras as paredes do templo pareciam primitivas. Olhos-de-Tinta raspou a extremidade do tanto ligeiramente por vários símbolos, observando o sangue seco descamando-se no chão.
Qualquer poder de magia-sangrenta que as marcas celebravam havia se dissipado há muito tempo. Olhos-de-Tinta girou sua O-Naginata ligeiramente, agarrando-a enquanto a lâmina apontou para baixo. Ela deu um passo adiante e mergulhou a arma no estômago da figura dormente. Com um movimento brusco, Muzan curvou-se, abrindo sua boca para gritar. Olhos-de-Tinta passou sua faca lateralmente para degolar o ogro. Com cada pulsar, a luz expandia. Logo era tão grande quanto um crânio, então duas vezes maior, depois do tamanho de Muzan. A luz aumentou e subitamente parecia uma pira ao redor do cadáver de Muzan. Ela curvou-se com os braços estendidos e esperou.
"Bom." - uma voz semelhante ao ruído de dez mil cigarras disse.
Olhos-de-Tinta observou.
A luz permanecia agora sobre o cadáver de Muzan como uma cortina brilhante de sangue. Além da cortina, Olhos-de-Tinta pode ver uma figura enorme. A figura parecia estar um pouco longe, permitindo que ela visse aquilo em sua totalidade. Parecia um homem em cabeça e tronco, porém sustentava dois chifres largos e curvos em seus ombros. Seus braços e pernas eram iguais aos de um esqueleto alterado, todas as juntas corcundas e faltando qualquer músculo compreensível. Cada braço terminava em uma massa de tentáculos que se retorciam como cobras.
O que ela mais observou foram os olhos do oni. três globos vermelhor perfeitos espreitaram-na intensamente.
"Eu sou o que mais se agrada com sua deslealdade. Levante-se minha serva!" - o demônio entonou.
Olhos-de-Tinta levantou-se.
"Você trouxe mais sangue para mim, contudo eu ainda requero mais... e requererei mais depois disso. Muzan era fraco. Ele tentou esconder você do meu olhar. Porém, eu vi o verdadeiro criado que me alimentou todos estes anos. Você receberá generosidades pelas suas ações fiéis, minha serva, todo o poder além do que você já descobriu sozinha no Pântano Takenuma." - a sinistra figura falou.
"Você sabe? Como?" - Olhos-de-Tinta indagou.
"Fique calada. Eu sei das suas meditações. Sim... e eu sei o que elas lhe trouxeram. Cumpra meu mandado e o que você aprendeu será como se fosse nada. Deixe meus presentes serem uma lembrança a você da necessidade de me servir bem. Deixe o corpo de Muzan ser uma lembrança do preço do fracasso." - proferiu a criatura demoníaca.
O corpo de Olhos-de-Tinta foi atingido por um raio de luz vermelha. Por um momento, ela gritou com uma dor que ela nunca havia experimentado. Seu sangue parecia ferver embaixo de sua pele, seus olhos preparavam-se para explodir da sua cabeça. Cada músculo parecia estar sendo puxado dos ossos. Tão rapidamente quanto veio a dor, ela desapareceu, deixando somente uma memória de tormento. Ela ofegou, caindo no chão.
"Levante-se! Levante-se, Olhos-de-Tinta! Levante-se, serva de Kuro... o Senhor do Fosso!!!" - o demônio exclamou.
Olhos-de-Tinta ergueu-se. Um energia mística escoou dos olhos dela na forma de névoa vermelha. Seu corpo sentia-se mais forte, mais rápida do que jamais tinha sido. Sempre depois das meditações ela se sentia bem, mas nada que pudesse se comparar ao que experimentara agora. Suas habilidades anteriores pareciam quase cômicas em termos de comparação. Cada membro formigava com fome de matar. Ela parou, virou sua cabeça lateralmente. Uma consciência diferente a golpeou mentalmente. Ela olhou toda a extensão do quarto com seu novo poder.
O dedo de Muzan se contraiu. O cadáver do ogro se mexeu entre a palha, banhado em luz vermelha. Muzan levantou-se nu, exceto pelo corte ensanguentado no seu estômago e pela garganta aberta. Sua cabeça apoiou-se em um dos ombros.
"O quê?" - o ogro disse densamente.
O olhar fixo indagava a nezumi diante dele. Ele curvou-se diante de Olhos-de-Tinta.
"Qual é sua vontade, Grande Mestre?" - ela perguntou voltando-se para Kuro.
O demônio gargalhou por detrás da cortina. Uma máscara preta ainda cobria a boca da ninja, contudo pela primeira vez desde que ela podia se lembrar, Olhos-de-Tinta sorriu. Afinal, seus poderes agora excediam até aqueles que ela outrora havia chamado de mestres. Olhos-de-Tinta olhou seu novo servo diante do seu novo mestre.
Olhos-de-Tinta olhou para trás, sem piscar.
"Ah, como você me provoca, pequeno docinho." - Muzan continuou. "Eu a encontrei sozinha no pântano, expulsa pelos seus próprios homens-rato. Você veio a mim, com fome e frio, agora você é um corpo putrefato bem alimentado, aquecida por deveres, não mais sozinha. Você teria morrido sem mim, ratinha." - O ogro riu maliciosamente.
"Contudo você me ama por isto?" - O aperto no queixo de Olhos-de-Tinta começou a doer. O osso rangeu sob a pressão. A face dura do ogre preencheu sua visão, sua pele um púrpura cinzento. "Eu te transformei no que você é e não ganho nenhuma expressão de gratidão. Você não é nada, só uma miserável, meu docinho nezumi, uma infeliz, sem amor, miseravelmente cruel."
Com uma pancada do seu braço, Olhos-de-Tinta navegou pela escuridão. Suas costas bateram nas pedras, logo depois foi a vez de sua cabeça e ela caiu no chão frio. No entanto, a nezumi ergueu-se rapidamente.
"Eu sou o que você me fez, mestre." - ela disse.
"Ora!" - Muzan gritou. Com velocidade surpreendente, ele arremessou uma pesada cadeira nela. A cadeira teria esmagado suas pequenas formas se ela não se movesse, mas Olhos-de-Tinta rolou lateralmente. A madeira rachou contra a pedra, partindo-se em várias partes. Antes dela se levantar, o ogro estava em cima de Olhos-de-Tinta com os punhos cerrados. Muzan era volumoso, massa feita de músculos e profusões ósseas, e seu rugido era ensurdecedor. "Olha! Você arruinou minha cadeira favorita!", ele disse.
Muzan apertou os dedos na garganta dela. Ele ergueu Olhos-de-Tinta, balançando-a sobre o chão. Novamente, seu hálito pútrido ondulou a face dela.
"Você irá consertar minha cadeira!" - ele exigiu.
"Claro." - Olhos-de-Tinta ofegou.
Ela já não podia respirar, então sua voz era como um sussurro: "Eu consertarei isto, como eu sempre faço, Mestre." A escuridão começou a fechar as extremidades da visão de Olhos-de-Tinta.
"Você é um bom docinho." - Muzan disse. Então ele a derrubou e prosseguiu: "Tão doce, tão tenra." Olhos-de-Tinta agarrou a própria garganta, tossindo e tomando fôlego. Muzan tinha se virado para ela e andado com dificuldade para as sombras. A escuridão o consumiu. Olhos-de-Tinta podia ouví-lo remexendo outra bexiga de vinho, enquanto enchia sua caneca quebrada. Sua voz ecoou assustadoramente para fora da caverna.
"O Grande Mestre requer mais sangue e ele falou de um grupo de nezumis acampado aqui perto." - o ogro falou.
Olhos-de-Tinta sentou-se. Seus olhos negros brilharam na luz escassa do quarto. "Grupo de nezumis?" - ela perguntou. "Você tem certeza que foi isso que ele disse?"
"Claro, claro. O Grande Mestre foi bem claro. Você quer saber se é seu precioso grupo Okiba, hein? Quem sabe? Todos os ratos são iguais: patéticos e reclamões. Pergunte-me de que família pertence as rãs lá de fora e minha resposta será a mesma. Quem sabe, quem sabe?" - Olhos-de-Tinta ouviu ele tomar um longo gole, então expirar. Sua voz veio do quarto nas sombras.
"Tudo o que você precisa saber é quem lidera os ratos, docinho. Encontre o rato mais gordo, rache sua flácida garganta e traga-me seu sangue nojento." - O ogro explicava.
Olhos-de-Tinta o saudou: "Como você deseja, mestre."
"Como meu Grande Mestre deseja." - Muzan a corrigiu e então arrotou. "Mas conserte a cadeira antes de você ir, minha coisinha bonita."
Um poeta, uma vez, havia chamado o pântano Takenuma pela alcunha de Ladrão do Amanhecer. A luz solar não havia tocado seu chão escuro há quase vinte anos atrás, desde que os kamis forjaram sua raiva no mundo. Agora, não importa que hora do dia, o pântano de bambu estende-se acinzentado como em crepúsculo perpétuo. Uma névoa circulou suas pernas quando ela entrou nas águas rasas. Ela conhecia essas partes de Takenuma bem e sabia evitar suas armadilhas mortais.
Durante a jornada, ela passou por buracos movediços, ninhos de besouros carnívoros e sepulturas assombradas tão facilmente como se estivesse flutuando sobre um campo de lírios. Ainda era cedo da noite, sua presa nao havia dormido. O Grande Mestre receberia seu sangue hoje à noite. Olhos-de-Tinta entalhou um pedaço de bambu com sua lâmina longa, aproximando-se da clareira. De pé em meio à imundície e à névoa, Olhos-de-Tinta desembainhou a espada O-Naginata de suas costas. Ela fixou a parte traseira da arma no solo e deixou a lâmina próximo de seu rosto. Olhos-de-Tinta respirou profundamente de olhos fechados.
Lentamente, ela começou a ouvir a melodia soturna do Takenuma. Rãs coaxavam. Chiados de insetos. De vez em quando um pássaro noturno se fazia ouvir. Esses foram os primeiros sons que vieram às orelhas de Olhos-de-Tinta: os sons da natureza. Porém, gradualmente, eles começaram a dar lugar para barulhos estranhos. Olhos-de-Tinta ouviu o gemido de espíritos dos mortos abafando os sons do pântano. Ela tinha certeza que aquelas vozes não eram o que ela estava procurando, mas aumentaram tanto que ela preferiu concentrar-se nelas. Poucas palavras eram inteligíveis, mas Olhos-de-Tinta sentiu as emoções que dirigiam aqueles gemidos fantasmagóricos. Vingança, sofrimento e as vezes nada mais do que a dor da perda e da confusão.
Quando seu foco se tornou mais profundo, ouvia até mesmo o choro lento e enfraquecido dos espectros. Uma terceira melodia ergueu-se então, completamente sobrenatural. Gritos agudos de animais torturados, incompreensíveis lamúrios de milhões de vozes e garguejos borbulhantes de alguém se afogando em areia movediça. Todos ao redor de Olhos-de-Tinta. Esses eram os murmúrios assustadores de kamis que fizeram do Takenuma sua casa. Eles eram a razão para sua meditação.
Os barulhos sombrios dos kami rodeavam Olhos-de-Tinta em correntes e redemoinhos. No início, eles não eram nada mais que um murmúrio. Porém, logo, o murmúrio se tornou tumulto em sua mente. O tumulto cresceu para cacofonia, gritando em suas orelhas, ameaçando rasgar a sanidade dela em pedaços. Olhos-de-Tinta concentrava-se contra a investida daqueles sons não-naturais, usando sua alma para procurar o que ela deveria encontrar em meio aquele mar de sons macabros.
Depois de movimentos convulsivos, ela havia encontrado algo. A cacofonia permaneceu, rodando e batendo na esfera emudecida na qual ela havia se escondido, enquanto Olhos-de-Tinta se focava somente no silêncio. Naquele silêncio estava o conhecimento que ela procurava. Quando tocou o casulo de silêncio com sua mente, ela entregou-se a forças desconhecidas e o seu corpo começou a se mover. Seu pé esquerdo deslizou lateralmente na lama macia, perturbando os répteis abaixo. Seu outro pé deslizou adiante. O peso do corpo havia mudado. Logo, seus braços se moveram também, seguidos da cabeça e do rabo. Sozinha à noite em Takenuma, Olhos-de-Tinta dançava como se fosse um boneco preso em correntes invisíveis dentro da bolha silenciosa de meditação.
Ela dançou por horas naquele silêncio, guiada pelo outro mundo. Olhos-de-Tinta acreditava que ela era a mais qualificada ninja dos nezumi, contudo ela nunca havia sido treinada por um sensei mortal. Aquela clareira era o lugar onde ela imaginava ser o melhor para treinar. Anos atrás, os sons de fantasmas e kami que somente Olhos-de-Tinta podiam ouvir tinham causado temor à mente de uma menina torturada. De alguma maneira, o fato dela poder ouvi-los passou a se tornar um pequeno conforto. Não demorou muito para que Olhos-de-Tinta procurasse algum padrão no meio do balbuciar sobrenatural.
Quando ela encontrou o bolso do silêncio, o lugar onde sua mente não era esfolada por vozes além do véu, foi que Olhos-de-Tinta começou a mudar. Ela ficou notoriamente mais rápida e mais forte depois destas meditações, além de também tornar-se mais proficiente com suas armas. Já havia ultrapassado o que ela havia aprendido, para sua idade, de centenas de professores. Essas habilidades não só tinham lhe assegurado sua sanidade, mas sua sobrevivência. Olhos-de-Tinta havia sido enviada em incontáveis sangrentas missões por Muzan e seu Grane Mestre das Sombras, e ela nunca havia fracassado nelas. Muzan nunca questionou como ela tinha tanto sucesso. Saber que Olhos-de-Tinta era bem sucedida era o bastante para ele.
Olhos-de-Tinta diminuiu seus movimentos e então parou. Os sons dos kamis enfraqueceram como se tivesse caído em um poço profundo. Por alguns momentos as vozes fantasmagóricas substituíram-nas, contudo essas sumiram muito depressa. Logo, ela só era rodeada pelas rãs, insetos, pássaros noturnos e o som pesado de sua própria respiração. Como sempre, depois de suas lições subconscientes, ela fitou a O-Naginata em uma mão. Nas extremidades da clareira em um círculo largo, bambu podre havia sido partido até o chão. Olhos-de-Tinta endireitou-se. Apesar da estranha luminescência do pântano, a lua era claramente visível, um disco branco pálido. Era quase meia-noite e ela finalmente compreendera algo importante. E não teve mais dúvidas quando partiu correndo para longe.
Erguendo-se diante dela na escuridão, estava o que tinha sido uma vez um templo ancestral. Seu telhado estava intacto, embora houvesse perdido diversos azulejos. As paredes eram as mesmas, indicando a grandeza do templo. Olhos-de-Tinta não parou para saber quem tinha sido adorado aqui a centenas de anos antes de ser dragado pelo Takenuma. Ao invés disso, ela espiou o terreno para planejar sua aproximação, escolhendo sua entrada na estrutura. Decidiu, então, colocar a máscara preta que era a marca dos ninjas em cima do nariz e da boca.
Ela caminhou silenciosamente pela névoa, circulando ao lado do templo dissecado. Sobre ela, uma janela aberta e negra como uma órbita ocular vazia. Dobrando as pernas, ela saltou pela janela desocupada acima. Nenhum guarda apareceu. Nenhum alarme soou. O corredor diante dela era quase totalmente ocupado pelo breu. Olhos-de-Tinta moveu-se lentamente, com armas em punho e com suas costas contra a parede de pedra do templo. Ela parou para ouvir algo. Um ronco macio ecoou de um quarto perto. Olhos-de-Tinta esgueirou-se nas trevas em direção ao barulho, ansiosa para cumprir sua missão.
Com uma palavra sussurrada, uma orbe de luz vermelha apareceu diante dos olhos de Olhos-de-Tinta. Pulsou como um coração agonizante, iluminando o corredor. Quando ela se movia, a orbe também se movia junto com ela, sempre com o intuito de iluminar seu caminho. Seu domínio do ninjitsu não tinha sido o único resultado das meditações dela no Takenuma.
Olhos-de-Tinta entrou em um dos quartos. No brilho carmesim da orbe, uma figura estava em um tapete de palha, embrulhado firmemente em uma manta esfarrapada. O quarto estava vazio, com exceção de símbolos obscuros que cobriam as paredes para formar um mosaico cru. Estas não eram escritas dos habitantes originais do templo. Realmente, as marcas contras as paredes do templo pareciam primitivas. Olhos-de-Tinta raspou a extremidade do tanto ligeiramente por vários símbolos, observando o sangue seco descamando-se no chão.
Qualquer poder de magia-sangrenta que as marcas celebravam havia se dissipado há muito tempo. Olhos-de-Tinta girou sua O-Naginata ligeiramente, agarrando-a enquanto a lâmina apontou para baixo. Ela deu um passo adiante e mergulhou a arma no estômago da figura dormente. Com um movimento brusco, Muzan curvou-se, abrindo sua boca para gritar. Olhos-de-Tinta passou sua faca lateralmente para degolar o ogro. Com cada pulsar, a luz expandia. Logo era tão grande quanto um crânio, então duas vezes maior, depois do tamanho de Muzan. A luz aumentou e subitamente parecia uma pira ao redor do cadáver de Muzan. Ela curvou-se com os braços estendidos e esperou.
"Bom." - uma voz semelhante ao ruído de dez mil cigarras disse.
Olhos-de-Tinta observou.
A luz permanecia agora sobre o cadáver de Muzan como uma cortina brilhante de sangue. Além da cortina, Olhos-de-Tinta pode ver uma figura enorme. A figura parecia estar um pouco longe, permitindo que ela visse aquilo em sua totalidade. Parecia um homem em cabeça e tronco, porém sustentava dois chifres largos e curvos em seus ombros. Seus braços e pernas eram iguais aos de um esqueleto alterado, todas as juntas corcundas e faltando qualquer músculo compreensível. Cada braço terminava em uma massa de tentáculos que se retorciam como cobras.
O que ela mais observou foram os olhos do oni. três globos vermelhor perfeitos espreitaram-na intensamente.
"Eu sou o que mais se agrada com sua deslealdade. Levante-se minha serva!" - o demônio entonou.
Olhos-de-Tinta levantou-se.
"Você trouxe mais sangue para mim, contudo eu ainda requero mais... e requererei mais depois disso. Muzan era fraco. Ele tentou esconder você do meu olhar. Porém, eu vi o verdadeiro criado que me alimentou todos estes anos. Você receberá generosidades pelas suas ações fiéis, minha serva, todo o poder além do que você já descobriu sozinha no Pântano Takenuma." - a sinistra figura falou.
"Você sabe? Como?" - Olhos-de-Tinta indagou.
"Fique calada. Eu sei das suas meditações. Sim... e eu sei o que elas lhe trouxeram. Cumpra meu mandado e o que você aprendeu será como se fosse nada. Deixe meus presentes serem uma lembrança a você da necessidade de me servir bem. Deixe o corpo de Muzan ser uma lembrança do preço do fracasso." - proferiu a criatura demoníaca.
O corpo de Olhos-de-Tinta foi atingido por um raio de luz vermelha. Por um momento, ela gritou com uma dor que ela nunca havia experimentado. Seu sangue parecia ferver embaixo de sua pele, seus olhos preparavam-se para explodir da sua cabeça. Cada músculo parecia estar sendo puxado dos ossos. Tão rapidamente quanto veio a dor, ela desapareceu, deixando somente uma memória de tormento. Ela ofegou, caindo no chão.
"Levante-se! Levante-se, Olhos-de-Tinta! Levante-se, serva de Kuro... o Senhor do Fosso!!!" - o demônio exclamou.
Olhos-de-Tinta ergueu-se. Um energia mística escoou dos olhos dela na forma de névoa vermelha. Seu corpo sentia-se mais forte, mais rápida do que jamais tinha sido. Sempre depois das meditações ela se sentia bem, mas nada que pudesse se comparar ao que experimentara agora. Suas habilidades anteriores pareciam quase cômicas em termos de comparação. Cada membro formigava com fome de matar. Ela parou, virou sua cabeça lateralmente. Uma consciência diferente a golpeou mentalmente. Ela olhou toda a extensão do quarto com seu novo poder.
O dedo de Muzan se contraiu. O cadáver do ogro se mexeu entre a palha, banhado em luz vermelha. Muzan levantou-se nu, exceto pelo corte ensanguentado no seu estômago e pela garganta aberta. Sua cabeça apoiou-se em um dos ombros.
"O quê?" - o ogro disse densamente.
O olhar fixo indagava a nezumi diante dele. Ele curvou-se diante de Olhos-de-Tinta.
"Qual é sua vontade, Grande Mestre?" - ela perguntou voltando-se para Kuro.
O demônio gargalhou por detrás da cortina. Uma máscara preta ainda cobria a boca da ninja, contudo pela primeira vez desde que ela podia se lembrar, Olhos-de-Tinta sorriu. Afinal, seus poderes agora excediam até aqueles que ela outrora havia chamado de mestres. Olhos-de-Tinta olhou seu novo servo diante do seu novo mestre.
O ogro olhou para atrás pacientemente, esperando. A risada de Kuro era macabra e perdurou por um bom tempo.
"Venha..." - ela falou para Muzan. "Pois nós temos muito a fazer... docinho."
"Venha..." - ela falou para Muzan. "Pois nós temos muito a fazer... docinho."
Nenhum comentário:
Postar um comentário